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PROCESSO HISTÓRIO DA URBANIZAÇÃO DO RJ 2

PROCESSO HISTÓRIO DA URBANIZAÇÃO DO RJ 2

Universidade Federal Fluminense

Projeto Geografia do Rio de Janeiro: Cenários atuais e futuros

Resumo do texto: A paisagem carioca na primeira república – O lugar da natureza e a imagem da cidade.

Autor: Raphael Marconi[1]

Fonte: teses.ufrj.br/fau_m/raphaelmarconi.pdf

Último acesso: 02/09/2011 às 14:00h

 

Palavras-chaves: Cidade, natureza, reformas urbanas.

 

 

Introdução

 

Esta dissertação tem por objetivo investigar o processo de construção cultural da paisagem carioca e seu entrelaçamento com elementos naturais e com a imagem da cidade. Dentro deste processo de construção cultural da paisagem carioca será investigado em que medida e com qual papel figuraram os elementos naturais. Também será investigada a produção cultural da imagem da cidade e como esta se relaciona e se serve da paisagem impregnada de elementos naturais.

Se pensarmos na cidade do Rio de Janeiro na atualidade nota-se que ela tem como uma de suas principais marcas a sua paisagem. Se pensarmos na cidade do Rio de Janeiro na atualidade nota-se que ela tem como uma de suas principais marcas a sua paisagem. Há um verdadeiro entrelaçamento entre paisagem, elementos naturais e imagem da cidade.

Na busca da construção deste entrelaçamento há que se fazer uma trajetória na história, identificar os possíveis e/ou prováveis pontos de contato entre paisagem, natureza e imagem da cidade antes mesmo de se ensaiar uma análise mais detalhada de quaisquer destes pontos.

A cidade do Rio de Janeiro sempre se relacionou com esta natureza de forma intensa. A natureza sempre exerceu um papel ambíguo na história da cidade do Rio de Janeiro. É de se notar que nos primeiros séculos de sua fundação, nos dois sítios de fundação escolhidos, as necessidades de defesa e de acesso a recursos naturais básicos como a água potável era a tônica deste papel. As condições naturais do sítio, ao mesmo tempo favoreciam a defesa e dificultavam o acesso à água potável. Seus pântanos não se mostraram propícios ao crescimento urbano e tornaram-se focos de doenças quando de um maior adensamento populacional ao final do século XIX. As necessidades de expansão da cidade ao longo de sua história fizeram com que a cidade lutasse contra seus mangues, pântanos e lagoas, através da execução de sucessivos aterros.

A cidade sempre teve que se afirmar perante a natureza circundante, insistindo em seu crescimento no terreno adverso, superando cada uma das dificuldades impostas pelo meio. Este estado permanente de tensão entre cidade e natureza atingiu um dos seus pontos críticos nas últimas décadas do século XIX, agonizado pelo crescimento populacional.

           

O Rio de Janeiro do período colonial era o Rio de Janeiro das vielas apertadas e sem calçamento, das ruas cheias de escravos. Esta situação da cidade do Rio de Janeiro, então capital da República, não ia ao encontro de alguns dos interesses nacionais de então. A recém-implantada República tinha em mente aplicar no país um projeto modernizante, visava promover a imigração européia e dar ao Brasil a imagem de um país civilizado. Uma capital aterrada pelas doenças tropicais e imersa em grave crise sanitária afugentava imigrantes e contribuía negativamente para a imagem do país.

O ideário reformista da Primeira República, apoiado nas idéias positivistas que circulavam pelo mundo à época, começou a moldar no Rio de Janeiro uma nova forma urbana, baseada na Paris de Haussmann, era preciso mudar a imagem do Rio de Janeiro e, conseqüentemente, sendo a capital do país: a imagem do Brasil. O país vive então sua primeira modernidade.

  

Capítulo I - Cidade e Natureza

 

           

As águas de fácil penetração da Baía de Guanabara e uma pequena porção de terra cercada por paredões rochosos atenderam à necessidade primeira da fundação da cidade, eminentemente defensiva e que estava incluída numa lógica de formação de rede de cidades que criasse condições de desenvolver o caráter mercantil que era buscado nas novas terras americanas.

O Rio de Janeiro, quando de sua fundação, não foi pensado para ser uma cidade que fosse ser expandida sucessivamente, seu próprio crescimento passou a se constituir numa luta constante contra os obstáculos naturais, em sucessivas intervenções onde a natureza teve que ser domada a cada ato de expansão.

O morro do Castelo comportava apenas uma pequena povoação. Quando a cidade começou a crescer a sua expansão se deu além do Morro, abaixo em direção à planície. No século XVII, o centro econômico já havia “descido” junto com a cidade. A povoação do Morro se liga à planície por três ladeiras, ainda juntas ao morro e tortuosas. Já nesta primeira expansão da cidade pode-se notar uma interferência dos elementos naturais no próprio traçado das ruas. A ocupação da planície encontra um território natural impróprio à urbanização com a presença de brejos e pântanos.

A geração do traçado das ruas ao estilo português tenta adaptar o traçado ao território, sendo os elementos naturais do território conformadores da própria cidade. A cidade começa a aterrar os brejos que formam a planície para formar as ruas que saíam das partes mais altas. As lagoas começaram a ser drenadas ainda no século XVII, a lagoa de Santo Antônio (atual Largo da Carioca), foi drenada por uma canalização que veio a dar origem à Rua do Cano (atual Sete de Setembro).

Outro elemento natural que foi muito caro à cidade nos seus quatro primeiros séculos de existência foi a água potável. Logo após a cidade ter se estabelecido no novo local de assentamento notou-se que os poços perfurados no novo sítio ofereciam somente água salobra, a solução encontrada para a escassez de água potável foi dar aos índios e escravos negros a tarefa de buscar água no rio Carioca.

Ao mesmo tempo em que o problema da água se resolvia, outro fator passou a preocupar os habitantes da cidade principalmente a partir na segunda metade do século XIX: a salubridade.

O crescimento populacional acabou por agravar as péssimas condições de saneamento da cidade. Os serviços de esgoto eram até então inexistentes e a coleta dos resíduos sólidos era tarefa dos escravos denominados “tigres”: sua função consistia em jogar os dejetos no mar carregando-os em barris. Os serviços de esgotos foram então concedidos pelo Estado a City Improvements Company, empresa de capital inglês. Esta mesma empresa ainda atendia à população discriminando as habitações coletivas das habitações dos mais ricos, o que contribuía para o agravamento da questão da saúde pública.

Neste quadro de insalubridade devido ao sistema sanitário deficiente, crescimento populacional acelerado e construções com condições precárias de higiene, surgem epidemias, dentre elas a de febre amarela.

Algumas teses médicas tentavam explicar a disseminação de doenças e mesmo com conclusões equivocadas (como a hipótese dos miasmas), acabaram por servir de justificativa a políticas públicas de remoção de habitações coletivas e mesmo servir de justificativa para o desmonte do morro do Castelo, para que os ventos do mar livrassem a cidade dos miasmas e das doenças.

Nos primeiros anos do século XX acentua-se o processo de segregação espacial entre ricos e pobres. Por algumas razões, dentre elas por buscar bairros mais salubres, os ricos passaram a se estabelecer em bairros como botafogo, que passa por um processo de desmembramento de suas chácaras, na verdade, esta auto-segregação dos ricos já tinha começado anteriormente, com as faltas d’água que persistiam até 1880 muitos ricos já haviam se mudado para chácaras na zona sul, onde podiam ter poços e ter acesso à água sem mais problemas. O processo de favelização que iria se iniciar em poucas décadas, tivera como base um forte crescimento populacional aliado a uma falta de moradias baratas juntas aos locais de trabalho.

Os desequilíbrios entre cidade e natureza que poderiam existir desde os tempos coloniais de fundação da cidade passando pelos tempos do Império, chegam aos primeiros anos da República em seu ponto máximo, transfigurados em crise na saúde pública ao final do século XIX.

No início do século XX, temos um novo momento histórico quando a técnica encontra-se mais desenvolvida e a superação dos obstáculos naturais pode ser resolvida com maior eficiência e os novos desafios de expansão passam a serem vencidos um a um. Temos desmonte de morros, os aterros sucessivos de linhas de costa e de lagoas, a abertura de túneis, etc... Para que as obras fossem realizadas soma-se ao domínio da técnica a presença de capital estatal, este obtido muitas vezes em empréstimos externos, há também vontade política para se realizar estas obras.

O próprio controle de algumas das doenças de então sugeriu uma trégua neste estado de tensão existente. O controle da febre amarela conseguido graças à aplicação da política de saúde proposta por Oswaldo Cruz fez com que em 1907 o número de mortes na cidade pela doença fosse igual a zero, neste mesmo ano o Rio já recebe um navio com turistas estrangeiros para visitar a cidade, até então evitada por ter uma imagem de cidade repleta de doenças, foi um indício que a imagem de cidade das doenças começara a se dissolver. A eliminação do mosquito transmissor reduziu também os casos de malária, embora ela só fosse erradicada da região na década de 30 com o saneamento de algumas áreas da baixada fluminense.

Mazelas da sociedade à parte o fato é que muito da idéia de crise sanitária, que poderíamos entender como uma crise na relação cidade-natureza, foi se perdendo a partir do controle das epidemias. A aparente redução da tensão existente entre cidade e natureza é resultado não apenas do domínio pela técnica e pela ciência de alguns dos conhecimentos necessários à resolução de desequilíbrios criados pelo surgimento de uma cidade em crescimento rápido e, podemos dizer sem controle em sítio tão peculiar. A idéia de redução da tensão entre cidade e natureza só foi possível porque isso acabou acontecendo nas áreas de maior “visibilidade” da cidade, nas áreas ocupadas pela camada de maior renda, principalmente grande parte da área central da cidade e a sua expansão para a zona sul. Por isso poderíamos chamar de aparente.

Para entender-se melhor este processo de redução de tensão entre cidade e natureza nas três primeiras décadas do século XX. Temos presente nesta época a idéia que a natureza deveria ser domesticada e submetida pela técnica e pela ciência ao dispor do homem, assim poderia ser equacionado o problema de como se relacionar cidade e natureza e ainda: resolver as tensões que desta relação surgissem. No Brasil e em sua capital à época a vontade de se tornar civilizado e europeu acabara por associar o domínio da natureza à idéia de se criar um país civilizado e europeizado.

A técnica e a ciência emprestavam valor à natureza, os elementos naturais não deveriam ser glorificados por si só nem mesmo na própria observação passiva da paisagem, quando transformados pela ciência e pela técnica, os elementos naturais nesta mesma paisagem poderiam, aí sim, em toda a sua grandiosidade, ajudar a expressar a imagem que se buscava para a capital do país.

 

Capítulo II - Imagem e Paisagem

 

Serão apresentadas ao longo da história, e principalmente no recorte temporal da Primeira República (1889-1930), as conexões entre: imagem da cidade e construção da paisagem, destacando-se sempre que possível neste processo a interferência da natureza.

Podemos começar pelos primeiros períodos de colonização portuguesa. A chegada a um território estrangeiro e estranho às origens do colonizador, presença de um sítio natural privilegiado paisagisticamente fez com que os primeiros colonizadores pontuassem seus relatos com representações que se aproximavam muito de um cenário bíblico, parecia a descrição do Paraíso terrestre reencontrado.

O outro lado da moeda poderia ser a face hostil desta mesma natureza que colocava ao colonizador os desafios da sobrevivência, precisando rapidamente conhecer o que se deveria comer, onde estaria a água boa de beber, enfim: dominar códigos de sobrevivência frente ao novo meio natural que se apresentava.

A experiência colonizadora portuguesa em território brasileiro teve em muitos aspectos facetas assimiladoras de características locais: a absorção de hábitos culinários indígenas e a própria mestiçagem, por exemplo.

Pode-se pensar ainda que dentro da cidade do Rio de Janeiro, a partir de 1763 quando passa ser a nova sede do Vice-reinado. E mais ainda: que as imagens emanadas da cidade-capital da porção de território colonizado passariam a ser expressão do impulso colonizador em terras brasileiras. O Rio de Janeiro passara então a ser capital de Vice-reinado, passando então a ser ponto focal da representação da colonização portuguesa em terras americanas, principalmente no que se referia ao estabelecimento de núcleos urbanos no novo território. Desta cidade deveriam emanar-se imagens que a este grau de representação correspondessem.

A concretização de uma cidade nos trópicos, imprimindo a marca de um cenário urbano consolidado no novo território e que tivesse vencido as adversidades de implantação oferecidas pelo sítio natural era da maior importância para a representação da cidade. Isto conferia êxito ao empreendimento colonizador.

Com a independência do Brasil em 1822 e conseqüentemente a invenção de um novo país, único e não dividido em muitos como as antigas colônias espanholas da América, o Rio de Janeiro ao longo do século XIX vai consolidando sua imagem de capital do país. A paisagem que envolvia a cidade ganha força na representação de sua capital e empresta sua imagem para representar o país. O envoltório natural não é mais relegado a um segundo plano, difuso e indistinto por detrás da representação da cidade colonial; ele passa a ser minuciosamente representado e inserido junto às representações da cidade, emprestando sua marca ao que se queria entender que fosse a capital do país e ao que fosse o país.

Há uma verdadeira profusão de documentos que podem ser estudados para que se entenda a imagem da cidade do Rio de Janeiro no século XIX. Tanto as iconografias e os relatos deste século, principalmente em sua primeira metade, tiveram um acréscimo em número pela abertura do comércio às nações estrangeiras como pela chegada da família real à cidade e também devido à chegada da Missão Francesa que acabou por produzir também farto material sobre a cidade.

A natureza era então exaltada, a floresta, o mar e a montanha envolviam a cidade e pareciam sugerir uma completa harmonia entre homem e natureza. Embora o ideário Romântico pudesse sugerir um equilíbrio cidade e natureza, o século XIX veio trazer uma crítica à própria urbe colonial. A própria produção de iconografias do período, exemplo das pinturas feitas pelos membros da chamada Missão Francesa, parecia denunciar a arcaica estrutura urbana colonial de ruas apertadas. Edifícios coloniais distanciados em estilo, por exemplo, do neoclássico europeu.

Temos ao longo do século XIX, além de assistir a três períodos distintos: fim da fase colonial com a presença da família real portuguesa, todo o período Imperial e início do período Republicano; a cidade do Rio de Janeiro assistindo a uma série de mudanças históricas. Junto a estas mudanças este século traz uma primeira grande crise entre a cidade do Rio de Janeiro e a sua imagem.

Ao longo do século XIX a cidade sofre uma verdadeira reordenação espacial, a lógica de crescimento e produção da forma urbana. Este incremento populacional iria colocar em cheque a antiga e obsoleta infra-estrutura da cidade. A circulação das mercadorias da cidade-porto pelas estreitas ruas de calado colonial se dava de maneira difícil; no Rio de Janeiro os serviços de esgoto eram deficientes, em algumas áreas inexistentes.

Ao final do século XIX as transformações urbanas são mais notadas: há uma segregação espacial entre ricos e pobres, por bairros e por zonas de expansão. Todo este quadro veio acompanhado do surgimento de uma forte crise sanitária: na segunda metade do século XIX diversas epidemias, em particular a de febre amarela, assolam a cidade, fazendo vítimas principalmente nos bairros onde moravam os mais pobres e junto às habitações coletivas onde as condições de higiene eram mais precárias.

Se fizermos aqui uma ruptura no entendimento da paisagem da cidade separando paisagem produzida por elementos naturais e pelos elementos construídos pelo homem passamos então a sentir um contraste entre natureza exuberante com um quadro construído confuso e obsoleto, ligado ao período colonial.

Com o próprio início do período republicano o novo governo brasileiro veio questionar se as imagens emanadas da capital do país viriam de encontro ao ideal de projeto de país que a República buscava construir. Houve até uma discussão sobre a possível transferência da capital para outro lugar, que correspondesse mais ao projeto republicano.

A primeira década do século XX assiste a um quadro onde tanto a população do Rio de Janeiro quanto as figuras dos governos local do Prefeito Pereira Passos e do governo Federal do Presidente Rodrigues Alves pensam numa mesma direção: a de se haver uma real necessidade em se mudar a imagem da cidade do Rio de Janeiro.

O viés higienista/sanitarista muito foi usado para justificar estas alterações de caráter espacial que deveriam mais do que tudo contribuir para transmutar a imagem da cidade e colocá-la em consonância com a imagem desejada pelo governo. O Rio de Janeiro como capital da jovem república deveria representar um Brasil moderno. O viés higienista, na verdade, ocultava outras idéias como a de “limpar“ o centro da cidade da presença de pobres e ex-escravos, expulsando-os para outras áreas, retomando o centro da cidade para as classes mais favorecidas.

Estas reformas fazem verdadeiras cirurgias na cidade: o aterro de linhas de costa vem atender a uma pressão por busca de novas áreas de frente ao mar livres da atividade portuária. O Rio de Janeiro tem que ser dotado de espaços que sejam representativos das atividades comerciais e relativos a ser uma capital de país. A imagem de capital desejada muito é buscada através da construção da paisagem, alterando-se a cidade.

O poder público logo proibiu diversos hábitos urbanos e os coibiu, principalmente nestes espaços representativos de modernidade: a venda de alimentos por ambulantes e em quiosques (e os próprios quiosques), vendedores de loteria, carnaval e capoeira. Alguns destes hábitos foram tolerados em espaços como a Praça XI, espaços onde poderiam ser destinados aos usos “sujos” do espaço urbano.

As transformações empreendidas durante o período Passos conseguiram se apoiar num consenso de toda a população que era necessário mudar a imagem da cidade. Quando isto começa a acontecer e as transformações urbano-paisagísticas se concretizam muito muda também do imaginário da população sobre a cidade que habita.

A Exposição do Centenário do Brasil em 1922 atua como sendo um momento de reafirmação de todas estas conquistas, reforçando a imagem de país civilizado a passos largos para o progresso. Por ser uma exposição internacional o caráter de espetáculo e grandiosidade acabou por ser mais enfatizado ainda.

Como toda exposição realizada anteriormente no Brasil foi exaltada a prodigiosidade de nossa natureza, porém nesta, mais que em todas as outras, foi destacado que de nada adiantava se ter uma natureza prodigiosa se a ela não agregarmos a cultura, como agente transformador e por meio do trabalho poderíamos levar a natureza a lugares nunca antes imaginados exaltando a civilização brasileira. Neste período o carioca parece ter reencontrado consigo próprio, pois fora possível fazer da sua cidade e em sua cidade o sonho de civilização tão almejado. Neste período, a cidade saneada, embelezada e modernizada abriu espaço para que surgisse o termo “Cidade Maravilhosa”.

Estabelece-se no Rio de Janeiro uma idéia que por meio de reformas urbanas e produção de paisagem, que eram mais do que tudo a produção de cenários de modernidade, se poderia alterar a imagem da cidade e do país e influir até mesmo na auto-estima de seu povo, empurrando-os para o caminho da civilização e do progresso.

As autoridades e sociedades de classe se articulam para que os problemas urbanos passassem a ser vistos e resolvidos de forma mais ampla, agregando toda a complexidade de muitas facetas não exploradas na época Passos como a questão do tráfego de automóveis, que com o passar dos anos passou a ser um dado novo a ser considerado nas intervenções urbanas. O fato é que em se tratando de produção de: paisagem, forma urbana e arquitetura as idéias modernistas através de seus aplicadores que poderíamos reunir num “grupo” de discípulos do “movimento moderno” iriam atuar sobre a cidade do Rio de Janeiro mais a partir dos anos 30.

O termo construção de paisagem é algo muito mais complexo e amplo do que simplesmente o de se intervir na forma urbana e no meio físico. Se formos entender esta construção como sendo um processo cultural vivo e dinâmico através da história poderíamos até imaginar que dois observadores diferentes, impregnados de experiências histórico-culturais diferentes pudessem interpretar uma mesma forma urbana de maneira diversa e com isso “construir” com seus olhares duas paisagens diferentes.

O exemplo de construção de paisagem muito apreciado no século XIX que poderia denunciar um procedimento aparentemente alheio ao sítio paisagístico peculiar da cidade do Rio de Janeiro seria o da construção dos parques. Elementos naturais são recriados, às vezes artificialmente em cimento como algumas grutas e contornos de rochas, delimitados por grades ou por muros como eram os limites dos parques; e dentro deste espaço limitado, fechado em si, poderia se apreciar uma paisagem pitoresca, simulacro de dominação e limitação da própria natureza.

O século XX traz novidades para a fisionomia da cidade, logo já em sua primeira década o Rio de Janeiro é objeto de uma série de transformações urbanas. Diversas reformas urbanas foram empreendidas quando da administração do Prefeito Pereira Passos (1902-1906), elas estavam previstas no plano de nome: “Embelezamento e Saneamento da Cidade”.

O projeto republicano de dotar o país de uma capital moderna, a la Paris, saneada e embelezada, imagem-espelho da grandiosidade da nação e pronta para atrair imigrantes encontrou no momento da eleição de Rodrigues Alves para a Presidência o seu momento de realização.

O governo federal se responsabilizou por algumas das obras que mudaram a fisionomia da cidade na primeira década do século XX, o porto talvez seja o maior exemplo disso. O capital federal também foi aplicado na abertura da Avenida Central (atual Avenida Rio Branco), canalização do canal do Mangue e arrasamento do morro do Senado.

A cidade, que já tinha um patrimônio natural de grande beleza poderia agora, após as reformas, se orgulhar do seu patrimônio edificado, parecia ter se rompido o grande descompasso existente entre o tecido urbano do século XIX: sujo, feio, pestilento e obsoleto e o quadro natural magnífico que envolvia a cidade.

  

Capítulo III - Paisagem e Natureza

 

A natureza era manipulada pelas intervenções urbanas na escala do arruador e rasgador de avenidas; era retificada, domada e colocada a serviço de se criar um cenário modernizante. Para a criação destes cenários contamos muito com a ajuda da arquitetura. Ao mesmo tempo os macro-conjuntos paisagísticos de rochas e águas passaram também a ser mostrados e acabaram ficando em sintonia com a nova imagem da cidade.

A cidade parecia estar pronta a pactuar e estabelecer uma nova relação com os elementos naturais baseada na conciliação da paisagem em escala urbana com a paisagem dos grandes conjuntos paisagísticos naturais, agora em harmonia e em estado de potencialização mútua, comungando um com o outro de uma mesma paisagem.

As transformações urbanas empreendidas pelo Estado nos espaços representativos da imagem da cidade, notadamente centro e zona sul, seguem até 1930 numa mesma direção, ao menos no que se refiram ao caráter paisagístico e ao papel da natureza dentro da construção da paisagem.

O tempo passa e os urbanistas também, a sociedade e a cultura sofrem alterações, o sítio geográfico e a paisagem que ele inspira parecem permanecer. Claro que há épocas da história nas quais a construção da paisagem da cidade usando os elementos da cena natural parece ser conduzida a este fim de maneira construída pelo processo cultural, neste caso para explicar o processo de produção da paisagem poderiam ser aplicados os estudos dos culturalistas tanto da história quanto da geografia. A idéia de paisagem culturalmente e socialmente construída parece perfeita para explicar a construção da paisagem carioca na época Passos.

A paisagem carioca parece ter realizado em sua produção um outro fato interessante que gostaria de destacar: a constituição de verdadeiros ícones paisagísticos. Destacarei três destes ícones: o morro do Pão-de-Açúcar com seu caminho aéreo, o morro do Corcovado com a estátua de Cristo e a praia-balneário representada por Copacabana. Na construção destes três elementos temos que levar em conta todo o processo social e cultural existente em suas construções, somado à força peculiar paisagística inerente aos mesmos, no que parece ser um modelo de construção de paisagem na cidade do Rio de Janeiro.

Seriam elementos-síntese do processo de construção física e mental da paisagem carioca a partir do início do século XX, são verdadeiros exemplos onde a paisagem é construída incorporando elementos da cena natural e servindo para representar imageticamente a cidade, e por extensão até mesmo o país. O morro do Pão-de-Açúcar foi, desde a fundação da cidade, elemento geográfico marcante para a cidade do Rio de Janeiro. Marcava a entrada da Baía a todos os que chegavam pelo mar, configurando-se em marco natural de sinalização marítima. O próprio formato ogival já provocou muitas interpretações como a de insinuar as mãos em oração apontadas para o céu. Mesmo descobertas geológicas que classificam-no como rocha primitiva que emergiu do magma, sendo um marco anterior mesmo ao próprio homem, um testemunho da história da terra.

Se tivéssemos que escolher um outro morro que tivesse sofrido processo parecido com o do Pão-de-Açúcar poderíamos destacar o Corcovado. Quanto ao primeiro já foram destacadas as razões, quanto ao segundo temos que imaginar que é o ponto mais alto do relevo da cidade entre a entrada da Baía e o centro da cidade, rocha de perfil peculiar também se destaca das demais por sua forma.

O morro do Corcovado, muito antes da inauguração da estátua do Cristo Redentor em seu cume em 1931, já fazia parte do percurso da Floresta da Tijuca. Em 1882, o governo Imperial já concedera aos engenheiros Francisco Pereira Passos e João Teixeira Soares o direito de construir a estrada de Ferro das Laranjeiras até o Alto do Corcovado.

Podemos muito atribuir o entendimento deste percurso ao Alto do Corcovado ainda dentro da lógica romântica do século XIX: da busca do bucólico e do pitoresco, da fuga da cidade repleta de doenças em direção aos arrabaldes salubres, como muito se fazia nas idas ao Alto da Boa Vista e a Petrópolis.

As questões que seriam interessantes de se explorar a partir deste ponto aparentemente secundário são as seguintes: Por quê este foi o local escolhido? Por quê foi erigida uma estátua que se inscrevesse na paisagem e fizesse parte dela?

Parece que, independente do fator religioso, foi usado aqui o caráter peculiar do morro do Corcovado enquanto elemento de relevo destacado dos demais e as particularidades do meio físico que o fazia se destacar da paisagem e ser visível de diversos pontos da cidade. Tinha-se uma visão privilegiada do morro do Corcovado partindo das partes então “nobres” da cidade como a entrada da cidade pelo mar e dos bairros que se abriam para a zona sul. Além disto, o seu peculiar formato que pareceria adequado a ser um perfeito altar para uma imagem que lhe correspondesse em escala. Morro e estátua parecem ser feitos um para o outro. Compõem um só elemento.

E a cidade segue construindo os seus ícones paisagísticos, que têm força própria e saem até mesmo do controle de seus próprios criadores. Merece destaque na cidade do Rio de Janeiro a praia de Copacabana que atinge seu ponto máximo em termos de fama na década de 50 o século XX, mas que já vinha desde o início deste mesmo século se destacando quando na cidade vinha se desenvolvendo a idéia de praia-balneário.

O uso da orla se popularizou a partir das reformas de Passos na primeira década do século XX com a abertura da Avenida Beira-mar, seguindo-se do surgimento de diversos clubs de regatas, alguns deles na mesma avenida como o Botafogo e o Flamengo.

Uma das motivações para a construção do Hotel Copacabana Palace foi a de receber os visitantes para a Exposição do Centenário da Independência de 1922, assim como para a construção do Hotel Glória. Fica aqui configurada a intenção de se buscar, a exemplo de localidades européias principalmente francesas, e de se firmar enquanto balneário turístico. Nesta mesma direção foi defendida a construção de cassinos.

A Avenida Atlântica não foi construída só uma vez, sofreu outras intervenções no século XX, sempre para que se alargassem as vias e calçadas, o mar foi aterrado em muito. O sentido de regularização sempre tomou conta destas intervenções, até mesmo o rochedo que existia próximo ao Hotel Copacabana Palace foi “desmontado”.

O Pão-de-Açúcar e seu caminho aéreo, o Corcovado com a estátua do Cristo e a orla representada por Copacabana são ícones e símbolos paisagísticos que também são ícones e símbolos da cidade, parecem ser elementos que conseguem agrupar em termos de imagem da cidade todo um repertório vocabular que define a cidade em termos de imagem e se formos até mais longe: servem para compor a própria identidade da cidade. Representam a cidade e o seu usufruto e dispor da paisagem, da natureza, suas montanhas, o mar, o calor sugerido, a sintonia particular existente na cidade entre natureza e civilização.

Enquanto elementos de representação coletiva podem ser entendidos como se a totalidade da população conseguisse reconhecer nestes ícones paisagísticos os atributos coletivos de representação que esta população atribui à cidade. Pode-se destacar também o caráter de verdadeiros “monumentos” contidos nestes elementos.

Além de serem monumentos e como tais instrumentos de rememoração coletiva de conquistas e vitórias alcançadas, são também ícones e símbolos da cidade e como tais se prestam a ser estampados em uma série de elementos que representam a imagem da cidade. Impressos turísticos, estampas, chaveiros e uma infinidade de objetos.

A cidade do Rio de Janeiro parece realizar em muitos de seus ícones paisagísticos uma síntese entre natureza, imagem e paisagem. Onde este ícone paisagístico, inicialmente constituído só por elementos naturais é individualizado e destacado dos demais elementos naturais sendo transformado pelas mãos humanas e construído enquanto paisagem e, mais que isso, consegue ser reconhecido como elemento de representação coletiva da própria cidade, elemento representativo da imagem da cidade, muitas vezes até do país.

  

Conclusão

 

O processo de evolução urbana foi condicionado pelo sítio natural, este último sendo tão cheio de variações em termos de forma e tipo muito determinou a própria conformação física da cidade sobre o território.

Nos primeiros tempos de colonização as produções de forma urbana e de paisagem se relacionavam com o natural muito mais no que tangiam as necessidades de sobrevivência e a viabilização de uma cidade em um território hostil. O elemento construído era marca de vitória frente ao natural: o forte sobre a rocha e a rua sobre o pântano poderiam trazer em si o contraste e a diferenciação entre natural e não natural.

Se formos entrar no terreno das representações sobre a cidade o mesmo valeria para o construído e as atividades citadinas em contraponto ao que era considerado natural; o elemento não natural conjugado a atividades citadinas daria sentido à cidade colonial. Esta visão partida (construído X natural) parece ter existido desde os tempos remotos de fundação da cidade e de certa forma perdurou ainda por todo o período imperial. Visão útil para enfatizar a oposição natural construído e marcar a existência da civilização “sobre” o território natural hostil.

Com o crescimento da importância da cidade do Rio de Janeiro que passou a ser capital da Colônia no século XVIII, e no século XIX notadamente após a chegada da família real portuguesa, a cidade já passaria a agrupar funções diversas. Na medida que a cidade com o seu crescimento em importância e tamanho demandava novas funções, esta mesma cidade tinha que dar conta da representação destas funções, funções de cidade mais importante da Colônia e posteriormente do Império.

No Império as intervenções urbanas e a construção de uma nova paisagem puderam refletir este momento histórico. Ainda na Colônia, a Missão Francesa, ao documentar a cidade e projetar para a cidade, denunciava no primeiro ato cenas dos habitantes da cidade e cenários dominados por uma arquitetura longe do que seria considerada ideal.

Ao longo do século XIX, temos na produção de paisagem (tal como no período colonial) uma visão partida entre o que é construído e o que é natural. Se a natureza deixara de ser hostil como no período colonial e passara a ser bela dentro de uma visão romântica, ela ainda envolvia a cidade e não conjugava com ela de um mesmo cenário. Apesar de natural e construído serem representados simultaneamente (lado a lado) faltaria algo ainda pra que fossem entendidos como se fosse coisa única: o ato de terem sido construídos e constituídos juntos.

Outro fator importante que merece ser destacado é a trajetória da construção da paisagem dentro do recorte temporal da Primeira República (1889-1930). Neste percurso temporal podemos identificar uma mudança substancial no modo de construção da paisagem carioca, tanto construção cultural como construção no que se refere à produção física de intervenções urbanas. Há nestas construções um contínuo e crescente entrelaçamento dos elementos da natureza com a própria busca de uma nova imagem para a cidade e para o país. Temos assim a quebra da visão partida entre natural e construído, estas polaridades se aproximam no ato de se construir paisagem.

Durante o período republicano a cidade parece superar muitos dos obstáculos naturais ao seu desenvolvimento tais como a viabilização de sua própria existência nos trópicos e seu crescimento sobre território pantanoso. Parece ter resolvido também o seu acesso à água potável. Nota-se, no entanto, um desequilíbrio ambiental, resultado do incremento populacional acelerado que fazia com que não se desse conta de se estabelecer uma infra-estrutura de saneamento e higienização adequada para a coletividade. O aparecimento de doenças na cidade é emblemático na exemplificação deste desequilíbrio.

A própria paisagem da cidade em escala urbana é questionada. A cidade de características coloniais, dada a estreiteza e configuração de suas ruas, é questionada enquanto cenário ideal de capital da jovem nação brasileira. A própria estrutura urbana não era considerada adequada às novas complexidades das funções de capital e de novas demandas enquanto cidade mercantil. Os habitantes da cidade desenvolviam no espaço público atividades consideradas pouco asseadas e anti-higiênicas como a venda de mercadorias a céu aberto.

A cidade estabelece nos primeiros tempos da República uma tríplice tensão: com a natureza, com a sua paisagem e com a sua própria imagem. Imagem esta que tinha que dar conta da própria imagem do país já que era sua capital. Não podia mais ser considerada uma cidade obsoleta em suas estruturas e repleta de doenças. A jovem República ao ter escolhido manter o Rio de Janeiro como sua capital certamente teria que resolver estas tensões e viabilizar a cidade, e por extensão a nação, a que fizessem parte do mundo civilizado.

A cidade entra no século XX buscando resolver seus problemas urbanos capitaneada por intervenções coordenadas pelos agentes governamentais. Estas intervenções atacam de uma só vez três diferentes frentes onde as tensões pareciam existir: a natureza, a paisagem e sua imagem. As ações e discurso governamentais acabam por mesclar natureza, paisagem e imagem da cidade.

A tentativa da superação da tensão existente entre a cidade e suas: natureza, paisagem e imagem, acabaram por ajudar na configuração de um tipo de intervenção urbana que fundiu estas três frentes nas suas diretrizes de intervenção. A partir do sucesso destas reformas houve uma superação da sensação de fracasso civilizatório que dominava a cidade e o país na virada do século XX. Havia a sensação de que pela mão da ciência era possível se constituir no país e em sua bela capital renovada uma civilização tropical viável e em direção ao progresso.

Mais ainda do que um modelo de intervenção urbana, teria sido forjado um modelo de construção física e mental da paisagem que levaria em conta conjuntamente os aspectos da natureza indo mesmo além da resolução de desequilíbrios ambientais. Teria se aberto espaço também para que nesta construção da paisagem os macro-conjuntos natural-paisagísticos existentes na cidade do Rio de Janeiro pudessem ser oferecidos à fruição visual e serem colocados em sintonia com a cidade.

Neste momento que se forja um novo modo ou modelo de intervenção urbana há também a aparente superação da polaridade natural/construído. A paisagem é construída conjugando-se as construções humanas ao sítio paisagístico natural. O propósito final era o de se construir uma imagem de cidade e de país que atendesse aos objetivos econômicos e políticos da nação.

De qualquer forma, pode-se afirmar que em termos gerais, tem-se uma conjuntura histórica nas três primeiras décadas do século XX quando a produção de paisagem da cidade do Rio de Janeiro leva em conta os elementos do sítio paisagístico natural e a imagem da cidade de forma conjunta.

Construções individualizadas onde elemento natural é construído paisagem pelas mãos do homem e se torna também elemento coletivo de representação da imagem da cidade.

Poderíamos questionar se nos dias de hoje a cidade em sua construção da paisagem sintoniza natureza e obra humana, colocando o resultado a serviço da reafirmação da imagem da “cidade maravilhosa”.

Algumas demandas da atualidade são baseadas em conceitos como o de desenvolvimento sustentável e de preceitos ecológicos que chegaram ao grande público principalmente a partir dos anos 70 do século XX e que não poderiam ser previstos no início do século XX.

Independentemente das particularidades da atualidade, temos no Rio de Janeiro uma natureza que parece estar sempre vigilante. A própria construção cultural da paisagem parece ter cunhado historicamente um modo particular de exaltação da natureza que impregnou na memória e do imaginário coletivo os atributos da paisagem espetáculo. A cidade estará sempre pronta a renascer das cinzas a partir de sua paisagem.


[1] Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Urbanismo – PROURB da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RJ. Agosto de 2003


OBS: O artigo completo referente a este resumo encontra-se disponível no seguinte site:

www.cprm.gov.br/publique/media/artigo_geoambientalRJ.pdf